16/02/2011

TRANSUBSTANCIAÇÃO - I


A CEIA DO SENHOR OU O SACRIFÍCIO DA MISSA?
UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICO-TEOLÓGICA SOBRE O
DOGMA DA EUCARISTIA

Pr. YURE GARCIA

Nenhuma outra questão no protestantismo, desde os primórdios deste movimento, ofereceu tantas dificuldades teológicas como a questão dos sacramentos. Todo o protesto da Reforma opunha-se fundamentalmente ao sistema sacramental do catolicismo romano. Em especial, a controvérsia em torno do Sacrifício da Missa e da Ceia do Senhor foi o mais longo e mais grave dos conflitos que eclodiram entre os seguidores da Reforma Protestante. Historicamente, este debate criou e continua criando separação entre vários grupos cristãos. Portanto, este é um assunto que, ao mesmo tempo, une ou divide a cristandade.

Breve Histórico

A eucaristia é um dos sete sacramentos da Igreja Católica Romana. A ceia do Senhor foi celebrada na forma original por doze séculos, mas no ano de 1200 A.D. o romanismo substituiu o pão sem fermento pela "hóstia sagrada".
No Concílio de Latrão em Roma (1215-1216 A.D.), o papa Inocêncio III deturpou as palavras figuradas de Cristo registradas no quarto evangelho "Isto é o meu corpo e isto é o meu sangue" criando o dogma da Transubstanciação. Em 1414-1415 A.D., no Concílio de Constança o papa João XXIII, retirou o vinho da cerimônia e as igrejas passaram a servir aos fiéis somente a hóstia, contrariando claramente a ordenança bíblica e o costume da igreja pós-apostólica de ministrar a ceia sob os dois emblemas, pão e vinho, como se percebe ao analisar os documentos patrísticos do primeiro século da era cristã. O Concílio de Trento (1545-1563 A.D.), em 1551, deu o golpe final contra a Ceia do Senhor, esclarecendo e aprovando definitivamente o dogma da Transubstanciação.
O que os cristãos modernos chamam normalmente de Santa Ceia, a igreja primitiva chamava de Eucaristia. A palavra "eucaristia" etimologicamente significa ação de graças. Pode ser considerado um nome judeu, uma vez que procede do termo original dado às orações de gratidão feitas por ocasião das refeições. A ceia judaica, portanto, é a primeira referência acerca do contexto original da eucaristia. Os teólogos católicos ainda hoje debatem entre si sobre a correta aplicação desse termo no "santíssimo sacramento". Além do Novo Testamento (NT), três escritores fazem referência à Ceia do Senhor em épocas anteriores à de Irineu. Dentre esses, o autor do Didaquê nos descreve a situação do cristianismo mais primitivo com uma liturgia simples de ação de graças. Os outros dois assumem um caráter bem mais místico. Segundo Inácio, a ceia é um "remédio de imortalidade e antídoto para não morrer, mas sim viver eternamente" (Aos Efésios, 20). Justino, por sua vez, concluiu: "pois não recebemos isto [a eucaristia] como se fosse pão ou bebida comum, antes, assim (...) é a carne e o sangue daquele Jesus que se fez carne por nós" (Apologia, 66).

Fica difícil decidir até que ponto essas concepções emanaram da influência das religiões de mistério, com sua idéia mitológica de que o participar de uma refeição com um deus significa tornar-se participante da natureza divina. Quando na época da festa de Corpus Christi, o "Santíssimo Sacramento" é levado às ruas em procissão dentro de uma patena de ouro representando o sol. Nisto, pode-se constatar uma flagrante analogia com as religiões pagãs da antiguidade. Conta-se que a deusa Ceres era adorada como a "descobridora do trigo" e representada com uma espiga nas mãos que correspondia à deusa Mãe e seu filho. O filho de Ceres, que se encarnara no trigo, era o deus Sol. Compare com a doutrina católica da transubstanciação que transformara Jesus num pedaço de pão de trigo no formato arredondado do sol, cujo ostensório também tem um desenho com raios solares.
A maioria dos adeptos da Reforma entendeu que o pão e o vinho apenas simbolizavam o corpo e o sangue de Cristo, negando a "presença real" nos elementos. Na época, o primeiro a propor essa interpretação de maneira fundamentada, foi o holandês Cornelisz Hendricxz Hoen. Os principais defensores da concepção simbólica da Santa Ceia foram: André Karlstadt, professor e colega de Lutero em Wittenberg; os reformadores suíços Ulrico Zwínglio, em Zurique, e João Ecolampádio, em Basiléia; e o teólogo leigo Gaspar Schwenckfeld, na Silésia (Alemanha).
Em seus escritos, Martinho Lutero refutava tanto a solução escolástica do problema, i.e., o dogma da transubstanciação, como a doutrina atribuída ao teólogo inglês João Wyclif, de que na Santa Ceia haveria mero pão e vinho.
As oblações eucarísticas de pão e vinho oferecidos a Deus, eram consideradas pela igreja romana como o "sacrifício puro". Diversos foram os fatores que contribuíram para o desenvolvimento de uma compreensão realista da Ceia do Senhor como sacrifício:
A luta contra o docetismo (gnosticismo cristão) trouxe, como conseqüência, uma ênfase crescente a realidade da paixão de Cristo retratada na Ceia;
O fato sempre presente do martírio cristão intensificava o sentido sacrifical da eucaristia;
O cristianismo surgiu num mundo em que as concepções sacrificais eram comuns em quase todas as religiões;
A presença do sacerdote como mediador entre Deus e o povo pressupunha a necessidade implícita de um sacrifício.

Contudo, foi apenas no tempo de Cipriano que a concepção da ceia como um sacrifício real oferecido a Deus pelo sacerdote, alcançou o estágio pleno do seu desenvolvimento. Segundo ele, a função do sacerdote é "servir ao altar e celebrar os sacrifícios divinos" (Cartas, 67:1). Na missa, o sacerdote atua in persona Christi, i.e., assumindo ativa e deliberadamente o lugar de Cristo. Na época de Tertuliano, o sacrifício eucarístico também era celebrado em comemoração e a favor dos mortos.
Os pontos centrais da teologia católica da eucaristia, já estavam estabelecidos por volta do ano 253 A.D., apesar de muitos pormenores ainda hoje estarem obscuros na mente da comunidade laica em geral.

Principais Concepções Sobre A Ceia Do Senhor

Concepção Católica Romana Tradicional

Divide-se em basicamente três princípios:
1o – A transubstanciação é a doutrina de que quando o sacerdote oficiante consagra os elementos, ocorre uma verdadeira mudança metafísica. As substâncias do pão e o vinho – o que de fato são – transformam-se respectivamente na carne e no sangue de Cristo. Nota-se que a mudança é na substância ou na essência, não nos acidentes. Assim, o pão e o vinho mantêm as suas formas originais, a textura, o sabor, etc. Mas o Cristo por inteiro está plenamente presente em cada uma das partículas da hóstia. Todos os que participam da Ceia do Senhor, ou da santa eucaristia, como é denominada, ingerem literalmente o corpo físico e o sangue de Cristo.

2o – A ceia abrange um ato sacrifical. Na missa um sacrifício real é novamente oferecido por Cristo em favor dos adoradores. É um sacrifício (gr. thysia) no mesmo sentido em que foi a crucificação. No culto da Igreja de Roma o sacrifício da missa é o ponto central.

3oSacerdotalismo: a idéia de que um sacerdote devidamente ordenado deve estar presente para consagrar a hóstia.
*Suma: O pão e o vinho são o corpo e o sangue físico de Cristo.

Concepção Luterana
Manteve a concepção católica de que o corpo e o sangue de Cristo estão fisicamente presentes nos elementos. Mas Lutero negou o dogma da transubstanciação. As moléculas não são transformadas em carne e sangue, mas o corpo e o sangue de Cristo estão presentes "em, com e sob" o pão e o vinho. Ë o que se conhece hoje sob o termo de consubstanciação, o qual, na realidade, não foi inventado por Lutero, apesar de muitos estudiosos atribuírem-no a ele. Lutero rejeitou o conceito da missa como um sacrifício e a idéia do sacerdotalismo.
*Suma: O pão e o vinho contêm o corpo e o sangue físico de Cristo.

Concepção Reformada ou Calvinista
Cristo está presente na ceia, mas não em forma física ou corpórea, antes, sua presença no sacramento é espiritual e/ou dinâmica. Segundo Calvino, assim como o sol permanece no céu, e seu calor e luz atingem a Terra, Cristo também estando no céu, se faz presente na ceia como influência real. Há um genuíno benefício objetivo no sacramento.
*Suma: O pão e o vinho contêm espiritualmente o corpo e o sangue de Cristo.

Concepção Zwingliana
A ceia do Senhor é apenas uma comemoração, um memorial. Possui um caráter simbólico e representativo. Esta idéia costuma ser associada à Ulrich Zwinglio. O valor do sacramento está simplesmente em receber pela fé os benefícios da morte de Cristo. Assim, a ceia é, em essência, uma comemoração e um memorial do sacrifício do Senhor Jesus Cristo.
*Suma: O pão e o vinho representam o corpo e o sangue de Cristo.

Declarações da Igreja Católica Romana sobre a Eucaristia, extraídas do seu Catecismo Oficial

"O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício". (p. 376)
uma só e mesma vítima, é o mesmo que oferece agora pelo ministério dos sacerdotes, que se ofereceu a si mesmo então na cruz. Apenas a maneira de oferecer difere". (p. 376)
"E porque neste divino sacrifício que se realiza na missa, este mesmo Cristo, que se ofereceu a si mesmo uma vez de maneira cruenta [com sangue] no altar da cruz, está contido e é imolado de maneira incruenta [sem sangue], este sacrifício é verdadeiramente propiciatório". (p. 377)
"No santíssimo sacramento da Eucaristia estão contidos verdadeiramente, realmente e substancialmente o Corpo e o Sangue juntamente com a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo". (p. 379)
Pela consagração do pão e do vinho opera-se a mudança de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo Nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância do Seu Sangue; esta mudança, a Igreja Católica denominou-a com acerto e exatidão transubstanciação". (p. 380)
"Com efeito, toda vez que é celebrado este mistério [a eucaristia], opera-se a obra da nossa redenção". (p. 389)
"Visto que Cristo mesmo está presente no sacramento do altar, é preciso honrá-lo com um culto de adoração". (p. 390)
"A Igreja Católica professou e professa este culto de adoração que é devido ao sacramento da Eucaristia, (...) expondo-as [as hóstias] aos fiéis para que as venerem com solenidade". (p. 380, 381)
Pode-se inferir a partir dessas declarações incisivas, as seguintes conclusões a respeito da concepção católica sobre a ceia do Senhor:

A eucaristia é um sacrifício real e propiciatório, para a expiação de pecados, para a reconciliação com Deus e para assegurar as bênçãos providenciais e graciosas de Suas mãos;
O que é oferecido na missa é o Cristo todo, seu corpo, alma e divindade, tudo que está presente fisicamente sob a forma de pão e vinho. O sacrifício eucarístico, portanto, é equivalente ao sacrifício da cruz, sendo aquele (o da missa) uma constante repetição deste (o da cruz);
Cristo se ofereceu uma vez na cruz, e Ele se oferece diariamente na missa por mediação do sacerdote que "cria Deus" na hóstia.

CONCLUSÃO
A Ceia do Senhor é um memorial da morte de Cristo e de seu caráter sacrifical em nosso favor, um símbolo de nossa ligação vital com o Senhor e um testemunho de Sua segunda vinda. Quando ministrada de modo adequado, a Santa Ceia é um canal para inspirar a fé e o amor do crente, à medida que ele volta a refletir sobre a maravilhosa realidade da morte e ressurreição do Senhor e sobre o fato de que os que nEle crêem têm a vida eterna.
Como, portanto, entender a Ceia do Senhor? Como um momento de relacionamento e comunhão com Cristo. Devemos pensar na ordenança não tanto como uma "presença real" de Cristo, mas, sobretudo como uma promessa e potencial de um relacionamento mais íntimo com Ele.
O efeito da ceia no crente deve ser proporcional à fé demonstrada pela pessoa e de sua reação ao que se apresenta no rito. Por isso, uma compreensão correta do significado da Santa Ceia do Senhor e uma resposta apropriada de fé são extremamente necessárias e indispensáveis para que seja alcançada toda a eficácia desta ordenança sagrada instituída e estabelecida pelo próprio Senhor, "até que Ele venha".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. ASTE: São Paulo: 1998.
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Vida Nova: São Paulo, 2004.
Catecismo Oficial da Igreja Católica Romana
.
CHAMPLIN, Russel N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol V. Hagnos: SP, 2001.
ERICKSON, Millard J. Introdução à teologia sistemática.Vida Nova: São Paulo, 1992.
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. Hagnos: São Paulo, 2001.
Martinho Lutero: obras selecionadas
. Vol IV. Comissão Interluterana de Literatura. São Leopoldo – RS, 1993.
MARTINS, Raphael Gioia. Ceia ou missa? À luz da bíblia e da história. Livraria Independente Editora: São Paulo, 1962.
Nisto Cremos. Ed. Rubens Lessa. Casa Publicadora Brasileira: Tatuí – SP, 1990.
SKARSAUNE, Oskar. À sombra do templo: as influências do judaísmo no cristianismo primitivo. Editora Vida: São Paulo, 2001.
TILLICH, Paul. A era protestante. Ciências da Religião: São Paulo, 1992.
WALKER, Williston. História da igreja cristã. JUERP/ASTE: Rio de Janeiro e São Paulo, 1983.

Nenhum comentário:

Postar um comentário